Aos 74 anos de uma vida dedicada à libertação artística e sexual, José Celso Martinez Corrêa, um dos maiores nomes da história do teatro brasileiro, faz seu manifesto a favor da diversidade: “A sexualidade é um mistério tão grande. O bicho humano tem atração por muita coisa, vai muito além do papai e mamãe, da homossexualidade. Não acredito na identidade, mas na mistura”
José Celso Martinez Corrêa, daqui pra frente somente Zé Celso, sempre diz algo diverso. Nos últimos 50 anos, durante os quais ocupou papel central na cultura brasileira, incluído um período de mais de dez anos de “ócio criativo”, o criador, diretor, ator, autor e força motriz do Teatro Oficina, de São Paulo, vai sempre além do lugar-comum, do discurso do momento, daquilo que queremos ou não queremos ouvir.
Não seria diferente em relação ao tema que move esta edição: “Vejo a diversidade como algo que te devora. Sou contra a divisão, a afirmação de uma identidade. Não acredito em identidade brasileira, mas na mistura. Como diz João Gilberto, ‘o brasileiro não tem personalidade, ele não precisa.’”
107 facadas
A primeira entrevista da minha vida foi com o Zé Celso, há mais de 20 anos, ainda no tempo da faculdade. Queria conhecer o artista que revolucionou os palcos brasileiros com espetáculos como O rei da vela (1967) e Roda viva (1968), com música de Chico Buarque. E entender por que aquele que era considerado por boa parte de seus pares (diretores, atores, atrizes, até mesmo críticos) “o maior diretor de teatro brasileiro” estava sumido, fora de cena desde meados da década de 70, quando, após ser preso e torturado por agentes do regime militar, foi para o exílio.
Aos que duvidavam que ele voltaria para retomar seu papel de destaque na cena cultural do país, avisou com todas as letras: “Eu vou voltar, o Oficina vai voltar”. O retorno definitivo foi detonado por um crime hediondo. No Natal de 1987, seu irmão Luiz Antônio Martinez Corrêa, também diretor e ator, foi assassinado a facadas em seu apartamento num ataque homofóbico.
Luiz Antônio estava em cartaz com o monólogo O ébrio e, após sua morte, Zé Celso assumiu o papel. Poucos meses depois, em entrevista ao programa Roda viva, decretou: “Não, nunca... Eu não quero nunca mais sair de cena... Quero atuar, dirigir, tudo, agora eu vou numa outra viagem”.
E que viagem. Nas últimas duas décadas, foi o mais fecundo homem de teatro brasileiro, com montagens históricas como As bacantes (1996), Cacilda! (1998) e a adaptação para o palco da obra monumental de Euclides da Cunha, Os sertões (a partir de 2001).
No segundo tête-à-tête de minha vida com Zé Celso, ele se manifesta favorável a uma lei que criminalize a homofobia, mas não só. “Sou a favor de uma lei contra todos os crimes fóbicos. Meu irmão foi assassinado com 107 facadas. Sete facadas matam um homem, para que outras cem? O que o cara quer matar ao apunhalar um cadáver sem parar? Uma coisa que não consegue matar nele mesmo, fugir de seu próprio Eros. Precisa passar por um processo de terapia sexual tântrica.”
Embora não sejam mais amantes, Zé Celso vive há quase 25 anos com Marcelo Drummond, protagonista de muitas de suas peças. “Temos dois apartamentos unidos, eu vivo numa ponta e ele na outra, com o namorado dele. Somos parceiros de trabalho e de vida há quase 25 anos. Admito que laços como esses devam ser sancionados por uma lei, mas eu não me casaria.”
Ao falar sobre sexualidade, afasta rótulos: “Acredito que ela é um mistério tão grande. O bicho humano tem atração por muita coisa, vai muito além do papai e mamãe, da homossexualidade. Sou um homem sexual”.
Sem se rifar
Em 25 de novembro, estreia o documentário Evoé, em que o diretor Tadeu Jungle leva Zé Celso para visitar três lugares seminais de seu universo humano e artístico: a Grécia, onde surgiu o teatro orgiástico até hoje realizado pelo Oficina; Canudos, palco da revolta de Antônio Conselheiro narrada em Os sertões; e a praia de Coruripe, em Alagoas, onde em 1556 os índios caetés devoraram o primeiro bispo do Brasil, dom Pedro Fernandes Sardinha. O documentário também traz entrevistas e imagens históricas dos mais de 50 anos de carreira de Zé Celso.
“O Zé fez tudo o que quis?”, pergunta o repórter a Tadeu. “É a única pessoa que eu conheço que só fez o que ele queria. Não rifou nem a alma nem o corpo. Foi muito difícil, mas, movido pelo desejo e pela intuição, ele conquistou muita coisa. Ele carrega essa medalha com a persistência de um guerreiro.”
"Não posso mais tomar alucinógeno porque sou cardíaco. Só posso fumar maconha e tomar vinho" [Zé Celso chega ao Oficina para a entrevista já avisando: “Antes de tudo eu preciso fumar um baseado para ficar lúcido”.]
Adicionar legenda |
Então não há antagonismo entre lucidez e drogas? Não, esse é o conceito de lucidez da velha sociedade positivista, cartesiana, lógica, que acredita numa organização do mundo em torno de um princípio. Eu não acredito em nada disso. Não é o cartesiano, penso logo existo. É existo, logo estou, estou! Antigamente os antropólogos chegavam às tribos, viam tudo de fora e não entendiam nada. Quando passaram a tomar a ayahuasca, as poções mágicas, compreenderam um outro tipo de lucidez, que é a lucidez do pensamento selvagem, que o Lévi-Strauss disse que é a única coisa universal. E o teatro é um ritual arcaico. Eu me lembro nos anos 60 quando a gente começou a fazer as peças viajando de ácido, de cogumelo, a plateia toda embarcava! Dava pra perceber no ar as partículas lisérgicas.
O ser humano tem necessidade de perder o controle? Eu não perco o controle. É como um computador... Eu fico muito mais, digamos, no meu estado pré-lógico, tenho uma lógica muito maior que no meu estado careta. Reflito mais, crio mais, organizo, faço as ligações das coisas. O descontrole é você permanecer careta. É perigoso! Você careta está atrás de uma máscara, está sendo manipulado, obrigado a ficar sujeito àquele papel que tem na sociedade. O que houve na cultura no Brasil até os anos 60, com exceção dos anos 20 do século passado, é que estava tudo programado. Nos anos 60 houve uma desprogramação. Houve de repente uma percepção do aqui e agora, em 1968... Em 67, quando da montagem de O rei da vela, pela primeira vez os conceitos de Oswald de Andrade viraram carne. Ao mesmo tempo no cinema acontecia o Terra em transe; nas artes plásticas o Hélio Oiticica tirava da parede o quadro, vestia no corpo e dançava; o Caetano compunha “Tropicália”; o Gil usava guitarra elétrica; o Plínio Marcos falava palavrões... Essa sincronia que houve em 67 no Brasil antecedeu em certo sentido o que viria a explodir em 68, na França. Quando fomos para lá com O rei da vela, já em 68, não tinha legendas em francês e o público ria e chorava do começo ao fim. Passava uma coisa que ninguém conseguia explicar. Uma sintonia com um retorno ao paganismo. Por que eu não posso ocupar isso? É meu! Que piração é essa de ficar esperando sei lá o quê? Nós tivemos uma sorte enorme de ter acontecido isso. Foi uma terra em transe que fez isso como lava de vulcão, pôs pra fora essa geração, que foi massacrada nos sanatórios, lobotomizada, cortaram a ligação com o cérebro arcaico, com o cérebro frontal, pra pessoa não sonhar, não viajar, ficar desligada.
O ex-presidente Fernando Henrique está levantando a questão da descriminalização da maconha... Mas ele tem um lado extremamente absurdo, que é o de legalizar o usuário e punir o traficante. Se a maconha é legal, então é um comércio como outro qualquer. É uma coisa de Clinton, de fumou e não tragou... Eu acho pouco. Muita hipocrisia. Mas é legal ele falar, deixa ele falar! E pra ele é muito bom queimar uns baseados, está numa idade boa pra isso. Se os velhos fumassem, seriam tão mais felizes. Reativa a memória...
Reativa?! Todo mundo diz o contrário...Imagina! Reativa a memória mais proustiana, o cérebro arcaico, pré-lógico, ela (des)civiliza. Porque a civilização recalca a memória, faz você selecionar a memória e fazer uma imagem de si extremamente construída. E a maconha desconstrói tudo. Você entra de novo em contato com o cosmos, em estado quase de inocência, de virgindade. E redescobre tudo. Eu quero propor uma lei que seria muito sensata. Quero propor não somente a descriminalização como a produção e a comercialização, e o imposto viria para a área cultural. Sou a favor do plantio de uma maconha de alta qualidade, sem noia, sem amônia, sem aquela carga toda que ela carrega hoje. Tudo supervisionado pelos ministérios da Saúde e da Cultura. A única coisa que estimula a violência é a proibição, só isso, mais nada! Se você proíbe sabonete, ai você vai ver, vai surgir criminoso atrás do sabonete.
E essa crise do crack, que vicia logo de cara... Parece que a cura é a maconha, junto com outras coisas pode recuperar muito. E o teatro, a arte. Porque a arte é mais excitante que o crime. Talvez essas pessoas sejam as mais próximas da arte, as mais desesperadas, que não encontram mesmo lugar neste mundo. Você trabalhar com arte no sentido radical é uma coisa que pira. Precisamos colocar essas pessoas em espaços onde elas possam criar, colocar pra fora suas angústias. Que recebam cultura de vida. O que motiva você? O maior motivo de tudo é sempre o tesão. A gente tem uma tendência ao outro, uma tendência a procriar também... Sejam filhos carnais ou objetos, obras de arte, que são como filhos... Esse teatro, é como se eu fosse o bisavô dele. O padre Vieira disse uma frase muito bonita: “Só existimos quando fazemos. Quando não fazemos, somente duramos”.
Esta edição tem como tema a diversidade. Isso sempre esteve no seu vocabulário ou está meio na moda? A diversidade existe na natureza, e, ao lado da diversidade, existe a antropofagia. As coisas se entredevoram. Isso é fatal. Não fui eu, nem Oswald de Andrade, nem os índios que inventamos. Eles estavam mais próximos do contato com a natureza para perceber isso... Não acredito em divisões, em guetos. Pelo contrário, as diversidades se atraem. Eu não gosto de uma pessoa exatamente igual a mim. O Oswald tem uma frase muito bonita: “Só me interessa o que não é meu”. Você procura sempre o outro. A diversidade é um grande estímulo para a antropofagia, para a devoração, para comer e ser comido.
A diversidade está presente em seu trabalho? De que maneira? O teatro vai ao encontro de todas as identidades, aliás, de todas as (des)identidades... porque eu não acredito em identidade. A primeira coisa que eu trabalho é que o ator tem que rebolar. Rebolar é importantíssimo, vem da África, onde tem influência muçulmana, a dança do ventre. O corpo tem que se desocidentalizar. A cabeça ocidental não é diversa, ela acredita num deus único, no estado, no pai, no chefe, é uma sociedade edipiana. Acredita que tem uma verdade, não existe verdade, existe a vida como ela é, com as mil multiplicidades de formas de vida que existem. A gente trabalha com criança de rua, elas são muito inteligentes. Quando viajamos, aprendemos pra caralho com elas. No Rio trazem o funk, aquele funk que arrasa, na Bahia, o axé, em Pernambuco, o frevo e o mangue beat, no Ceará, o forró. A gente aprende com criança, bicho, planta, pedra. Com artistas jovens e mais antigos, gente pobre, gente rica, brancos, negros, indígenas, estrangeiros.
Zé Celso Com que idade você percebeu sua diversidade sexual? Eu gostava muito de brincar de barro no quintal de casa, em Araraquara [interior de São Paulo], que era enorme. E brincava com toda a molecada... Na rua de trás era a zona. Minha mãe era muito moralista e tentava fazer um cordão de isolamento, mas tínhamos uma atração enorme pela zona. Tinha uma puta chamada Dora, que fumava pela boceta. À noite eu ficava ouvindo o cabaré das putas, chamava Majestique, achava que era palavrão, tocava uns sambas, uma jazz band, eu ficava acordado. Uma vez fugi, uma puta me encontrou e me levou pra casa, chamava Bentinha. Levei uma surra enorme.
Você foi reprimido? Muito, mas nunca me deixei reprimir. Sempre fui muito ruim, rebelde, desobediente. Minha mãe tinha formação espanhola, de bater, tudo... Meu avô era franquista. Um homem que eu adorava, mas tinha aquela linha espanhola de inquisição, castigo, ajoelhar no milho, proibir de ir ao cinema.
E seu pai? Meu pai era maravilhoso. Quieto, um silêncio...
Não era repressor? Nada, nada. Era um homem muito bonito, elegante. No casamento vestiu um terno bois de rose, uma cor que o Clark Gable usava num filme. Ele ia muito ao cinema, tinha uma filmadora 16 mm. Tinha uma biblioteca, em casa tinha obras de Graciliano Ramos, Machado de Assis, Tchecov, Goethe, Euclides... Uma das pimeiras edições de Os sertões. Meu avô paterno também era espanhol, mas era hippie total, tocava guitarra. Minha avó era índia, doidona, minha bisavó andava a cavalo de pé no lombo do bicho, depois pirou, ficava dando cambalhotas com 90 anos, doida. Da minha mãe tinha esse lado espanhol, italiano, cristão. Tomei partido do lado do meu pai. Mas minha geração teve um problema muito grave, teve que matar a família no sentido de matar os personagens, pai, mãe, irmã, avô, aquilo tolhia muito. A família era um microestado, com papéis definidérrimos, se você não matasse... Eu comecei como artista quando perdi um papagaio, sentei na máquina e escrevi Vento forte pra papagaio subir, minha primeira peça, sobre essa necessidade de ir embora, deixar a terra natal...
"A sexualidade é uma coisa absolutamente desconhecida porque a igreja cometeu um dos maiores pecados do mundo ao criminalizar o sexo"
Eu ia perguntar isso. Essa foi a primeira coisa que você escreveu? Escrevia antes, mas nada que prestasse, coisas que não passavam por mim. Aí eu vi o filme Um bonde chamado Desejo. Até então achava que as pessoas não tinham “por dentro”, que só eu tinha subjetividade. E as pessoas eram de papelão. Quando vi a Vivien Leigh, o Marlon Brando... foi o Elia Kazan [diretor do filme] quem me revelou a intersubjetividade.
Que idade você tinha? Ah... eu devia ter uns, não sei exatamente... uns 13... Fui a uma sessão no Ipiranga [bairro de São Paulo], eu morava em Araraquara, mas vinha passar férias na casa do meu avô, bem aqui em frente. Sou meio Kant, vivi nesse lugar eternamente. Saí pra todos os lados, mas meu negócio é aqui. Uma coisa que eu quero dizer, para não perder o roteiro dos meus 74 anos, 53 de teatro, é que quero construir aqui na Bela Vista, no Bexiga, um espaço arquitetônico e urbanístico que a gente chama de Anhangabaú da Felicidade, porque vai ser construído no terreno do Silvio Santos. Vai ter um teatro-estádio, o estádio Oswald de Andrade, uma universidade antropófoga, a primeira turma já está cursando. Vai ter creche, uma oficina de florestas para reflorestar o bairro. Revitalizar o Bixiga como aconteceu na Lapa, no Rio, que hoje é um paraíso infernal maravilhoso, porque lá foi cultivado o Circo Voador, a Fundição Progresso, o samba, o choro. O Bexiga pode tornar a ser, ligando-se à Augusta e à praça Roosevelt, um centro de mistura total, esse é meu superobjetivo agora.
Qual é o papel da orgia no seu teatro? A orgia está na origem do teatro grego. O encontro no teatro é orgiástico porque tem os atores, o público, você está vivo, tem aquele tesão, aquela eletricidade, sente as pessoas. O ser humano tem que se conhecer mais cedo ou mais tarde. A sexualidade é uma coisa absolutamente desconhecida porque a Igreja cometeu um dos maiores pecados do mundo ao criminalizar o sexo, de onde a gente vem. Nietzsche tem razão, o cristianismo é das coisas mais degradadoras da condição humana. O que o cristão chama de alma pra mim é Eros. A alma erótica, quando fica com tesão, que vibra, é a mesma vibração da criação estética. Você fica tomado por aquilo e atinge um estado... As maiores inspirações vêm do sexo transformado em Eros. Sexo platônico, que erradamente os monges da Idade Média traduziram como sendo o amor sem físico, sem corpo. Mas não existe corpo sem alma, alma sem corpo. Eu fiz O banquete, de Platão, aqui... Há séculos sou atormentado pela pergunta: “Por que você usa a nudez em cena?”. Eu acho que é o figurino mais bonito que existe, é muito difícil atuar nu. “Ah, você quer tirar a roupa?” Isso não quer dizer nada. É outra coisa. O culto ao corpo. O corpo que tem que estar preparado pra ficar nu.
Você é a favor de uma lei que criminalize a homofobia? Sim, porque qualquer fobia, se for assassina, o cara tem que ser tirado e cuidado. Tem que fazer ele cair na real. Ele está fugindo do Eros dele. Todo homofóbico é uma bicha enrustida. Meu irmão foi assassinado com 107 facadas. Sete facadas matam um homem. Para que as outras? O que um cara está querendo matar ao apunhalar um cadáver? Está querendo matar algo que está nele e que ele não pode matar. Devia ter uma lei, sim, contra todos os crimes fóbicos. Porque tem homofobia, negrofobia, tem oficinafobia, tem zé-celsofobia. Recebi muita ameaça de morte e não só porque sou gay. Deve ser por outras coisas. Fui torturado [durante a ditadura militar] e até hoje não sei por quê.
Há preconceito na forma como a imprensa trata a homessexualidade? A imprensa trata com preconceito tudo, no sentido de vender para a classe média, porque há uma ditadura da classe média. No teatro, 90% das peças são para a classe média, já que é o público que paga, que vai ao teatro, então só faz para aquela classe. É disso que a gente procura fugir. A gente procura inclusive no elenco ser transracial, transcultural, procura levar outra cultura, da tragédia e da comédia, porque o drama é para a classe média. Odeio drama. No Brasil não tem imprensa marrom. Sou a favor da imprensa marrom. O sucesso de Os sertões na Alemanha foi por causa da imprensa marrom, que publicava artigos contra nós, mostrando a gente pelado, cheio de tarja no pau, na boceta. Pelo menos a imprensa marrom fala, aqui é só essa exaltação da burguesia. O problema não é a homofobia. Nós recebemos essa subvenção da Petrobras, sempre com muita dificuldade, muita demora. Aí sai uma coluna social falando de ajudazinha número um, ajudazinha número dois, como se fosse corrupção o dinheiro da Petrobras ser investido num teatro que tem 50 anos. Uma boa parte dos jornalistas, esses eu trato a pontapés, faz perguntas para fazer escândalo. Eu sou a favor do escândalo, mas não é o escândalo que eu quero fazer. O que eu quero fazer, que é subversivo, não sai.
"Todo homofóbico é uma bicha enrustida"
Você é ciumento? Fui, não sou mais. Pelo contrário, sou instigantemente provocativo para que aconteçam coisas. Incentivo que as pessoas namorem no teatro, à vontade.
E você é ciumento do seu teatro? Não, mas eu gosto dele, defendo ele.
Dos atores e das atrizes? Não. Eu trabalho a liberdade absoluta entre as pessoas. O Oficina Uzyna Uzona é uma organização onde tem muita coisa que eu nem sei que está acontecendo. Felizmente a gente conseguiu uma auto-organização... Dou muita importância ao autocoroamento, como Napoleão fez, as bacantes fazem. A pessoa sabe de si. O mais importante para o ator de teatro é ser um anarquista coroado. Ele é um louco que se coroa, assume. Porque no teatro a entrega é total, como no amor. Tenho a tendência de exigir que as pessoas tenham a mesma entrega, mas não posso exigir nada. Trabalho para que isso aconteça. Incentivo pessoas que tenham um mínimo de autodeterminação a desenvolver seu máximo potencial humano. A maior função do teatro é desenvolver a consciência do poderio energético que o indivíduo tem. Claro, o indivíduo plugado na coletividade. Só o cara que é plugado no coletivo e no mundo tem o poder de enfrentar essa lavagem cerebral da cultura dominante, da anticultura, da contracultura. Eu não sou contracultura, sou a favor da cultura. A contracultura é a que minimiza o potencial e o mistério da vida, do humano.
E a discussão do casamento gay? Eu não me casaria nunca. Mas acho importante, se isso é importante pra alguém...
Teme que possa reproduzir o modelo heterossexual, com a monogamia no centro? Depende da cabeça das pessoas. O cara pode ser gay e supercareta. Eu não me casaria, mas vivo com o Marcelo Drummond, que é protagonista neste teatro, é o Hamlet, é o Oswald. Não somos mais amantes, mas vivemos em dois apartamentos unidos, eu numa ponta, ele noutra, com o namorado dele. Faz 25 anos que a gente trabalha e vive junto. Criam-se laços, econômicos e de outros tipos, que admito que devam ser sancionados. Mas eu não me casaria.
No documentário Evoé, que o Tadeu Jungle acaba de finalizar sobre você, uma hora você canta uma música mais ou menos assim: “Que os meus inimigos vivam muito para ver de perto a minha vitória...” [Começa a cantar] “E com essa fazer a narração da nossa história.”
Então, Zé, quem são seus inimigos hoje? Olha... é uma coisa que desanima... que não está à altura da luta. O Silvio Santos, com quem briguei muito para não construir um shopping em torno do Oficina, estava à altura. Foi um adversário maravilhoso, me ensinou muito. Se não fosse ele, eu não teria o conhecimento que tenho hoje do capital financeiro, de como funciona o sistema e como enfrentá-lo. Mas a burocracia é um inimigo abstrato... Não existem fundos no mundo que possam resolver o trânsito de São Paulo e a burocracia. É um tormento... a relação que tem o estado... a coisa mais difícil que existe atualmente é... são as relações de impedimento de produção. Nós somos trans-humanos para fazer o que fazemos. E a dificuldade que há do entendimento disso. Também acho que o maior inimigo hoje seja certa fobia que as pessoas passaram a ter do teatro. O teatro deveria ser popular como o futebol. Porque o trabalho do teatro pressupõe a formação de craques. De divas. De divos. O ator deveria ter as condições que tem o jogador de futebol. Nós trabalhamos com concentração, com muitos exercícios físicos. Essa fobia da cultura... A cultura não constou na agenda da Dilma. O lugar foi ocupado por fundamentalistas. A discussão do que é cultural, aborto, tratamento ao homossexual, sei lá, tudo isso virou discussão entre Igrejas querendo tomar o poder e o lugar da cultura. Porque isso é cultura. São as coisas fundamentais da vida, né? Daí vem o desrespeito ambiental, às tribos indígenas... porque falta a noção da cultura.
Mas isso não vem de agora... O apoio à cultura brasileira floresceu na época de Getúlio Vargas, quando o Gustavo Capanema era ministro. Nos anos 60 o teatro tinha muita importância, por isso foi tão reprimido a partir de 68. Os militares reprimiram a cultura porque sabiam que era uma coisa perigosa para a ordem que eles estavam estabelecendo. Com o neoliberalismo a tendência foi de a cultura virar mercadoria, serviço, consumo. Já o Gilberto Gil e o Juca Ferreira trouxeram a tropicália, a antropofagia para o Ministério da Cultura. O próprio Lula foi um presidente antropófago.
Como assim? Ele fez um governo cheio de rebolado. De Carmen Miranda. De pega pra cá, joga pra lá. Ele sambou no poder e foi comendo tudo o que podia. Fez um governo incompreensível do ponto de vista marxista. Só quando ele abandonou a ideologia realmente e foi para o pragmatismo, que é a essência da antropofagia – é o que é e, dentro do que é, o que eu posso fazer? –, quando ele superou a máscara de operário, de líder sindical, quando se descobriu pernambucano, quando chegou até a mãe dele de volta, aí ele teve uma humanização progressiva. E descobriu a si mesmo. Antes tinha muita influência da Igreja. O Lula fez um governo laico maravilhoso nesse sentido. Com nenhuma religião, com nenhuma ideologia, com nada. E teve um Ministério da Cultura luxuoso. O Gil e o Juca conseguiram uma verba extraordinária, como o ministério nunca tinha visto.
"Lula fez um governo cheio de rebolado, de Carmen Miranda"
E a Dilma, como está esse começo? Gostei muito do discurso dela na ONU, do que disse sobre globalização, sobre nosso direito de interferir e participar de qualquer assunto no mundo. Seu erro trágico foi o corte de dois terços no Ministério da Cultura, depois de toda a luta do Gil. A [ministra] Ana de Holanda está sem armas. No Brasil essa questão do corte fiscal virou tabu, ninguém pode tocar nisso. O fato de a Dilma não ter entendido ainda a excepcionalidade da cultura, isso me preocupa. O teatro precisa estar no centro, no coração de um plano estratégico da erradicação da miséria.
Explique isso melhor. A erradicação da miséria se dá juntamente com a erradicação da miséria cultural. Mais do que a educação. Porque a educação pode se propagar e formar uma série de indivíduos voltados para o mercado e que não vão saber de si. Não vão saber o que têm na frente do nariz. Não são criadores. Já o teatro é uma universidade... é a coisa que mais forma o indivíduo em contato com o outro, com o coletivo. O teatro é a catarse, você sai diferente do que entrou. Só a cultura propicia a possibilidade de sonhar, de imaginar, de criticar, de saber de si mesmo, de saber do seu corpo, de saber da natureza. A cultura, e não a macroeconomia, é a infraestrutura da vida, a energia propulsora. A macroeconomia está fazendo mal à humanidade. Quando o indivíduo, por meio da cultura, desperta para a autopercepção de que é livre, na hora ele sai da miséria. Porque tem muita gente que tem dinheiro e está na miséria, humanamente falando. Não sabe de si, está perdida. Aí vai para o crack, para o consumo, para essa bobagem de celebridade.
E a educação? Os ministérios da Educação e da Cultura deveriam se juntar, não compreendo educação sem cultura nem cultura sem educação. A gente vive uma época de inteligência, de saber e de inventividade. Tanto que nos Estados Unidos tem gente que está abandonando universidades para ir ao Silicon Valley, onde ficam as empresas de tecnologia. A China investe 18% em pesquisa, o Brasil investe 1%. O Brasil deveria priorizar os ministérios da Educação e da Cultura e o Ministério da Ciência e Tecnologia, que são realmente as coisas que podem levar o Brasil para outro patamar. Com a responsabilidade que o Brasil tem diante dos problemas do mundo hoje, não haver investimento nessas áreas é algo doentio, uma fobia. Não querer crescer, não querer desenvolver, querer ficar cover, querer comprar coisa de segunda mão, querer continuar zumbi, autista. Eu aposto inteiramente na nossa cultura, não como algo nacionalista. É a mistura de gente, gente que tem de sobreviver no balanço do samba, no equilíbrio desequilibrado do samba, é um país que, se tiver investimento, nossa! É hora de juntar educação, cultura, ciência e tecnologia e investir maciçamente. Mandar ver.
Essa é a sua visão de Brasil? Ligado, evidentemente, à saúde e ao ambientalismo. E tem que democratizar a democracia. Nosso congresso hoje não é democrático. Precisamos ter uma democracia mais direta.
"Sinto dificuldade de conseguir coisas que outros conseguem com facilidade. Depois de morto, talvez seja mais fácil. Mas eu gosto da vida"
Como está sua saúde, Zé? Não está boa, não. Estou com um pouco de labirintite, o coração doente, tenho um marca-passo. Agora, com 74 anos, estou começando a sentir realmente a velhice. Até o ano passado eu não sentia. Agora, como fiquei dois anos sem férias e trabalhei demais, mas demais mesmo, sem parar nenhum dia, tenho a impressão que perdi... Estou tendo muito pesadelo, tenho que me reconstruir a cada dia. Tô muito cansado, preciso ficar uns 15 dias no mar. Agora eu vou para Pernambuco, ficar o dia inteiro no mar, na água quente, tem de ser quente. E caminhar, caminhar muito. E depois voltar para o teatro.
Tem medo de morrer? Não tenho medo da morte, eu tenho desejo de viver. Eu sei que também tenho certa importância na realização de vários projetos. Mas talvez as coisas aconteçam mais rapidamente sem mim. Como em vida eu sou uma pessoa que aprontou muito, não sou unanimidade. Eu sinto muita dificuldade de conseguir as coisas que outras pessoas conseguem com mais facilidade. Depois de morto, talvez seja mais fácil [risos]. Mas eu gosto de viver. Eu gosto da vida.
Nenhum comentário:
Postar um comentário